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Um conto: O sonho de apenas seguir em frente

multidão de pessoas caminhando para o horizonte da imagem

Um dia eu tive um sonho estranho. Sonhei que estava caminhando no meio de uma multidão. Era uma multidão que misturava homens, mulheres, crianças, adultos, idosos, de todas as raças, de todos os jeitos. E todos caminhavam com o olhar perdido, numa marcha cadenciada como um exército de zumbis. No meio de tanta gente, eu não conseguia enxergar para onde todos estavam indo, mas mesmo assim, eu acompanhava aquele cortejo, pois fiquei com medo de parar e ser pisoteado pelas pessoas que vinham atrás de mim.

No meio do trajeto, eu senti uma dor na sola do meu pé. Para minha surpresa, só então eu percebi que estava descalço e que um espinho tinha me espetado. Desajeitado, tentei tirar o espinho, mas ele tinha entrado fundo e, na pressa, quando eu tentava puxar, parece que doía mais. Ao mesmo tempo, as pessoas ao meu redor começaram a falar que aquilo não era nada e que era para eu continuar seguindo em frente. As que vinham atrás, começaram a me empurrar, para que eu não atrapalhasse o seu caminho.

E assim, me coloquei em marcha novamente, meio que mancando, tentando não pôr o pé no chão. Mas depois de algum tempo, fui me acostumando com a dor e, cansado de ficar com o pé levantado, arrisquei a pisar novamente. E, mais uma vez, a dor começou a me incomodar mas, mais uma vez, falavam que aquilo não era nada e eu fui andando como eu conseguia. Mais algum tempinho depois, aquilo já não parecia tão incômodo e eu pude acompanhar melhor a multidão que continuava seguindo em frente.

Apesar de não sentir mais tanta dor, eu comecei a sentir um incômodo, agora não mais na sola do pé, mas no pé inteiro. Tentei ver o que estava acontecendo, e meio que pulando num pé só, para não atrapalhar a marcha, olhei para a sola do meu pé, onde estava o espinho. Para a minha surpresa, ele não tinha mais nenhuma ponta para fora, pois ao pisar, devia ter feito ele entrar mais profundamente. Agora seria mais difícil tentar tirá-lo, já que agora ele não tinha mais ponta para eu tentar puxá-lo. O problema é que o machucado parecia ter infeccionado e a infecção parecia ter se alastrado por todo o pé e até um pedaço da perna. Nesse momento, me assustei, pois não achei que aquele pequeno espinho pudesse causar tanto estrago. As pessoas que passavam continuavam a dizer que aquilo não era nada, que era para continuar seguindo em frente.

Com o meu pé e agora a perna latejando, comecei a perguntar para as pessoas porque tínhamos que seguir em frente. E todas me respondiam “porque não podemos parar”. Desesperado, comecei a empurrar as pessoas e abrir caminho pela multidão, tentando ir para o lado, para ver se conseguia sair daquela confusão.

Depois de muito esforço, consegui me separar da multidão mas, mesmo assim, continuei andando mais algum tempo, para me afastar dela.

Agora, vendo a multidão mais de longe, eu conseguia ver algumas coisas que eu não enxergava antes, pois estava no meio dela.

Muitas pessoas também estavam descalças, outras descamisadas, algumas nuas.... e quase todas tinham feridas e machucados pelo corpo. A maioria não andava normalmente, também mancavam, outras ficavam incomodadas com as feridas do corpo, outras ainda que não podiam mais andar, literalmente se arrastavam pelo chão, mas continuavam a seguir em frente.

Estava tão distraído olhando aquela cena insólita, que não notei a aproximação de alguém, que tocou levemente no meu ombro, me assustando. Quando olhei para o lado, vi alguém da minha idade, com um sorriso fraterno no rosto, me cumprimentando. Notei que ele estava de muletas e trazia muitos curativos pelo corpo.

Ele olhou para o meu pé e, sem silêncio, ficamos olhando juntos a multidão que não cessava a sua marcha incansável. Depois de algum tempo, ele começou a tentar me explicar algumas dúvidas que com certeza ele sabia que eu tinha.

Você machucou o seu pé, porque você estava descalço. Com certeza, você nunca se preocupou em se preparar para a caminhada da vida, onde as estradas são cheias de obstáculos e perigos. Outros não se vestem adequadamente para se proteger do sol escaldante que nunca para de nos fustigar. Se você estivesse calçado, o pequeno espinho que você pisou não faria diferença. Mas talvez você tenha se preocupado com outras coisas que julgou serem mais importantes. Os espinhos vão machucar aqueles que naquele momento não estão preparados para se proteger deles.

E uma vez machucados, as pessoas querem seguir em frente, sem estarem preparadas nem para cuidar dos seus ferimentos. Vão mancando até chegar a se arrastarem, mas não deixam de seguir em frente.

Nesse momento, eu o interrompi e perguntei para onde aquela multidão se dirigia, afinal.

Ele me olhou mais uma vez com um olhar de compaixão e me disse: Não sei aonde é o ponto final dessa caminhada, mas eu sei que se for um bom lugar, eu gostaria de chegar lá em condições de usufruí-lo plenamente. Mas se for um mau lugar, que eu chegue então em condições de lutar bravamente. Por isso, acho que antes de seguir em frente, temos que estar em condições de fazer isso. Preparados para que a estrada não nos machuque e curados das feridas que nos enfraquecem. Ter como aproveitar a caminhada e não nos acabarmos nessa jornada, pois não sabemos o que vamos encontrar no fim dessa estrada.

Nesse momento, acordei. Fiquei alguns minutos sentado na cama refletindo sobre o sonho que acabara de ter. Olhei pela janela do prédio e vi a movimentação de pessoas que já ocorria, com cada um fazendo a sua caminhada particular no meio da multidão. Me perguntei o quanto as pessoas que estavam ali apressadas e olhando no relógio, estavam carregando espinhos e machucados e se arrastando para seguir em frente.

Quando desci da cama e coloquei o pé no chão, senti uma dor familiar. Mas diferentemente do sonho, quando olhei para a sola do meu pé, não vi espinhos ou machucados. Mas finalmente entendi que precisava cuidar dos espinhos que pisei por toda a estrada da minha vida que eu tinha percorrido, pois só assim vou conseguir aproveitar a minha caminhada e me preparar para o que nos espera ao final da nossa jornada.

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